Ao contrário de muita gente, em véspera de prova eu durmo bem. Claro que acordei algumas vezes antes do relógio despertar. O bom é que mudou o horário de verão e ganhamos uma hora a mais de sono. Levantei, tomei banho. Mesmo sem vontade comi um bagel e tomei Gatorade. Estava tão ansiosa que a comida não descia. Enfim, tudo pronto. Sai parecendo uma astronauta. Estava com a roupa de corrida, uma calça de moletom, uma blusa de moletom, o casaco térmico branco (que havia comprado na feira), luvas, cachecol.
Cinco da manhã ainda estava bem escuro. E fui para minha estação de metrô. Só que a estação que eu estava acostumada a pegar o trem estava em manutenção justamente hoje. Pensei: “ferrou”. Mas eles colocam ônibus para fazer a mesma linha do metrô e em poucos minutos passou o suttle. Pedi ao motorista que me indicasse a 96 St, onde deveria descer para pegar o outro trem para o ferry. Comecei a ver o movimento de outros maratonistas.
Embora estivesse indo tudo bem, estava preocupada com o horário. Minha previsão era chegar ao ferry às 5h45. Só que, sei lá porque, num ataque repentino de pânico, achei que o metrô que eu peguei estivesse indo para o lado errado de onde tinha de ir. E desci na estação 59 St – ainda vi a cara de outros corredores estranhando eu saltar ali. Quando olhei no mapa, vi que tinha feito besteira – estava no metrô certo, sim. O jeito foi esperar outro trem, que para meu desespero demorou uns 10 minutos para passar. A cada estação, novos corredores se juntando.
Descemos. Ali tomaríamos o ferry para atravessar o rio e chegarmos a Staten Island, onde pegaríamos os ônibus para a largada. Subindo as escadas rolantes para o saguão do ferry, senti como se fôssemos a uma celebração. Sim, parecia um culto, uma celebração religiosa. Todos concentrados, respeitosos. Nós, corredores, indo à nossa missa, à grande missa.
Desta vez fiquei para dentro da embarcação, porque estava muuuuuito frio.
Descendo do ferry, uma fila nos levava aos ônibus. E rapidamente chegamos às vilas onde iríamos esperar a largada, a grande largada. Minha vila era Green e eu iria sair na wave 2, às 10 horas. Ainda havia as vilas Orange e Blue e waves 1 (9h40) e 3 (10h20).
Parece que você está em um acampamento hippie. Algo como Woodstock. Ou em um abrigo de homeless. As pessoas sentadas no chão, com cobertores, encapotadas, com café na mão. Podíamos pegar à vontade café, chá, bagels, gatorade, água. Fui de bagel e café com leite para esquentar. Até um determinado horário, não havia fila para os banheiros.
Estavam estacionados também os caminhões da UPS, com os números correspondentes onde deveríamos deixar nossas bolsas.
Estava tão feliz, mas tão feliz, que não conseguia parar de andar, explorando todas essas sensações. De onde eu estava, avistávamos a Verrazzano Bridge, a primeira de cinco pontes que atravessaríamos e a que nos levaria para dentro do grande sonho. Um cenário lindo.
Conversei com algumas voluntárias, que disseram que participavam porque era uma grande festa e que se sentiam orgulhosas de poder colaborar com corredores do mundo todo. Com cada um que eu puxava conversa, recebia um sorriso, um good luck, um incentivo. Os deficientes, com seus handcycles, também estavam por lá.
Devo ter chegado umas sete da manhã à vila. Minha largada era às 10. Faltando duas horas, eu enviei um torpedo para o celular da minha filha. Disse que estava muito feliz e que a amava muito. Engraçado como ali despertou em mim essa sensação “de um amor maior que tudo…”
O sol começou a sair, mas ainda estava muito frio. Sei lá de quantos graus – depois me disseram que a sensação térmica era de 3 a 5 graus. O tempo passou depressa. Começaram a chamar os corredores da primeira onda. Nos autofalantes, as orientações eram dadas o tempo todo em várias línguas, inglês, espanhol, francês, japonês. Achei que já era hora de colocar minha sacola no guarda volumes e ir para uma outra área, para esperar a largada.
Engraçado quando você espera tanto por esse momento e de repente ele está ali, se realizando. Em uma outra grande área entre as vilas, em um gramado enorme, rolava um show, uma banda tocando e milhares de corredores espalhados, esperando seu momento. Na lateral, os currais com as letras, nos quais você deveria entrar, conforme havia sido orientado.
De repente me deu uma fominha e eu voltei à minha vila para pegar mais um bagel, só para garantir. Na verdade foi meio empurrado que comi e até mordisquei uma barra de proteína.
Dirigi-me a meu curral, com outros tantos corredores. Como estava bem no meio do bolo, decidi descartar minha calça de moletom ali mesmo. E não senti frio.
Vi muita gente entrando em currais que não eram os seus, ou seja, dava para burlar a “lei”: sair em qualquer onda e em qualquer curral. Abriram-se os portões e ficamos alguns momentos ali. Eu devia estar com aquele sorriso de criança feliz no rosto. As duas blusas que eu vestia, mais a luva, só descartaria durante o percurso.
Na largada, não há como não se emocionar ao som de New York, New York. Lembrei de como tudo começou, dos preparativos, dos treinos, dos amigos, dos filhos, de tudo. Agradeci. De repente, o tiro de canhão. Largamos. Eu estava na Maratona de Nova York. Agora era real. O sonho virou realidade.
Minha largada foi pela parte de baixo da ponte. E nesse primeiro momento você não escuta nada. Um silêncio absoluto, todos concentrados, respeitosos com a maratona. E eu, de tão no mundo da lua que estava, não vi a baia de Nova York à esquerda, nem o oceano Atlântico à direita.
Teríamos marcação em todas as milhas (1,6 km) e a cada 5 km. Não tinha uma estratégia, nem sabia quanto tempo eu fazia por milha. A partir dali é que eu começaria minhas contas.
Estava tão concentrada que nem senti subida alguma e a primeira milha nem vi passar, mas na segunda meu relógio marcava 17 minutos. Era uma ótima marca, mas sabia que estava muito rápido e que não manteria esse ritmo até o fim. O ideal é que eu fizesse 9 minutos por milha. Nessa hora descartei meu primeiro moletom. Logo depois, a luva.
Sei que a partir dali, depois da ponte, começava a festa. Pessoas nas ruas, gritando, vibrando. Adorei o Brooklyn. O público nas ruas, nas calçadas em frente às suas casas, com cartazes. Tudo lindo. Bandas em alguns pontos estratégicos, dos mais diferentes estilos e gêneros musicais.
Estava maravilhada com tudo. Quando olhei, vi a placa de 5 km e falei em voz alta: “Já?” Nessa hora meu relógio marcava 27 minutos. Estava indo muito bem, mas rápido também. Eu tinha que me controlar. Minha meta era fazer 6 min/km.
De repente a gente entra numa grande avenida e se junta com os corredores das outras cores. Estava com uma camiseta com meu nome e era uma delícia ouvir as pessoas gritando “Go, Yara, Go”, “Good job”, “You are strong”, “You can do it”.
Sem medo de errar, você se sente uma estrela. Eu só corria feliz. A cada chamada pelo meu nome, eu devolvia um sorriso. Muito emocionante. E pensava em tudo, como era bom estar aqui, nos meus filhos, nos meus amigos, nos meus treinamento. Antes dos 10 km tomei meu primeiro gel.
Os 10 km passei com 58 minutos. Já havia caído meu ritmo, mas eu ainda estava bem. Procurei lembrar das orientações de meu treinador e resolvi segurar um pouco. Ter feito uma maratona antes também me ajudou muito.
Alguns corredores viam escrito Brasil nas minhas costas e me cumprimentavam: falei com um português, um venezuelano, um francês… É a maior festa que se pode imaginar.
Num determinado trecho no Brooklyn, passamos por um guarda, que bocejou. Uma espirituosa corredora perguntou para ele: “Are you tired?” E demos risada.
Tinha Gatorade e água em todas as milhas. Na maioria das vezes eu só pegava água, para molhar a boca. No meio dessa avenida do Brooklyn descartei o segundo casaco (térmico). Mas sei que depois senti um pouco de frio. Nas mãos e no rosto você sente frio. Teve uma hora que minha mão ficou dura. Se eu batesse em algum lugar, quebrava. E quer ter a sensação do frio no rosto? Abra agora seu freezer e coloque seu rosto ali.
Na meia maratona já estava dentro dos 6min/km (2h06m). Mas tinha muito chão ainda e resolvi administrar ainda mais o tempo. Para mim, sabia que o bicho poderia pegar depois do km 30.
E fui, como a Grete Waitz pelas ruas do Brooklyn e Queen. A norueguesa Grete Waitz foi uma das maiores maratonistas do mundo, nove vezes campeã da Maratona de Nova York, campeã mundial em Helsinque 1983, vice-campeã olímpica em Los Angeles 1984 e quatro vezes recordista mundial da prova. Disputou sua primeira prova na distância de 42.195 m em Nova York, em 1978, vencendo a corrida e quebrando em dois minutos o recorde mundial então vigente.
Atravessamos a Queensboro Bridge e chegamos a Manhattan. Depois de uma curvinha, lá estávamos na 1ª avenida. O mundo gritando por você.
Isso já era um pouco mais do que o km 25. E esse foi um dos momentos mais emocionantes para mim.
Justamente no começo da 1ª avenida tinha uma banda tocando a música Viva La Vida, do ColdPlay. Vou explicar rapidamente o significado disso para mim, mas esse trecho merece um post especial, que farei depois.
Essa é uma música que gostei desde a primeira vez que ouvi e escutava direto no Brasil, em volume altíssimo às vezes, sempre imaginando que eu iria pensar nela durante a maratona, porque me deixava feliz. Lembro de várias vezes entrar no túnel Ayrton Senna, que tem aquele ar de túnel do tempo, ouvindo ColdPlay e “viajando”.
E ali, entrando na 1ª avenida, toca justamente a música Viva La Vida. Obrigada pela trilha sonora perfeita no meu filme, Deus!
É a coisa mais linda as pessoas vibrando, torcendo. Entre aquele monte de gente, eu não tinha ninguém para torcer especialmente por mim, ninguém segurando um cartaz para Yara, mas ao mesmo tempo todos torciam por mim. Cada vez que diziam meu nome pensava que era um amigo meu.
Esse é um trecho que mais uma vez o coração e as pernas aceleram. Novamente baixa a Grete Waitz. Segurei a onda para poupar energia até o km 30. No 30, pensei: “agora eu já cheguei aqui, falta pouco e estou me sentindo bem. Nada de dor, nada de cansaço, é só manter o ritmo”. Avistei o treinador Marcos Paulo Reis, que ficou contente de me ver e perguntou se estava tudo bem. Estava!
Um pouco mais para frente bateu uma baita fome. Já havia tomado outro gel, comido uma barra de cereal que me deram no caminho, uns chocolates MMs, mas estava com fome de sal.
Daí foi a vez de encontrar uns professores do grupo Run&Fun, que estavam dando apoio a seus corredores. Diminui o ritmo, expliquei rapidamente que era brasileira, conhecida do treinador Mário Sérgio, e pedi “peloamordedeus alguma coisa para comer”. Me deram um saquinho com uns quadradinhos cor de laranja que eu não consegui identificar o que era – acho que era batata assada.
Depois da 1ª avenida, atravessamos a Willis Ave Bridge, atingindo o Bronx, também com torcida. Ainda estava com fome, queria alguma coisa salgada. Mas tive de tomar outro gel. E de repente vi uma moça com uma mão estendida com uns pacotinhos. Perguntei em português mesmo: “é sal?” Ela disse: “Yes”. Peguei um – agradeci “thank you” – e coloquei um pouco de sal na boca. Era tudo o que estava precisando.
Mais uma ponte, a Madison Ave Bridge, e surge o Harlem, “o meu bairro” – onde estava hospedada. Passei perto do Marcus Garvey Park, onde eu já tinha ido antes. Por ali lindos corais gospel.
Corríamos pela 5ª avenida e finalmente surge ele, o Central Park. No km 40 ou milha 25, pensei: “Caraca, falta pouco. Vai dar tudo certo. Estou perfeita, inteira, feliz como nunca”. E sabe que adorei essa coisa de milhas? Parece que passa mais depressa. Psicologicamente eu achei bom.
No final, sacanagem, tem ainda uma subida no Central Park. As faixas de 26 milhas estavam ali. Faltavam poucos metros. Cruzei a finish line com o tempo líquido de 4h21m39s – no tempo bruto, 4h38m58s. Muito, muito feliz.
Estava cansada, achei até que ia ter um treco. Recebi a manta térmica, a medalha, ainda conversei com um latino – não lembro agora de que país – que falou até da São Silvestre e aos poucos fui voltando ao normal.
Levei um tempão para chegar ao meu caminhão da UPS para pegar minhas coisas. Pelo celular recebi um torpedo do fotógrafo Tião Moreira dizendo que o Marilson tinha ganho a maratona. Fiquei super feliz e comentei com alguns outros maratonistas ao meu lado.
Em frente ao Museu, encontrei outros amigos brasileiros e o pessoal da Kamel que eu conheci também. Tiramos fotos, falamos de cada trecho da Maratona, comemoramos. Fui para casa, tomei banho, me arrumei e fui jantar com o grupo do Marcos Paulo Reis. Tinha feito minha primeira Major!