Em agosto ou setembro de 2013, recebi um telefonema com um convite.
– Oi, Yara. Como estão seus treinos? Encararia uma maratona daqui alguns meses? Não posso dar detalhes agora, mas preciso saber do seu interesse. Será uma prova diferente e apenas para convidados.
– Sim, encararia. Corri a Maratona do Rio recentemente (julho) e sigo treinando – respondi, sem pensar muito.
A prova diferente era a Mizuno Uphill – a primeira maratona de subida do Brasil, na deslumbrante Serra do Rio do Rastro (SC).
O ano de 2013 seguia como uma tentativa de reorganização pessoal, profissional e esportiva.
(ABRE PARÊNTESES… No final de 2012 – eu com 46 anos -, me descobri grávida do meu então namorado. Seria meu terceiro filho (e o segundo dele), que nasceria em julho. Do susto, à alegria e à perda do bebê foi pouco mais de um mês. Foi uma das situações mais tristes da minha vida. FECHA PARÊNTESES)
Voltar a ter um grande desafio no esporte me ajudou a ir em frente – foi daí que veio a vontade de correr a Maratona do Rio (meus últimos 42K tinham sido em 2010). Mas a vida seguia bagunçada. Como jornalista free-lancer, uns meses eu tinha bons trabalhos, outros ficava no sufoco. Muitas ideias, vários projetos, porém poucas ações de fato para concretizá-los. Eu começava um monte de coisa, mas diante de um obstáculo, parava. E tudo ia ficando pelo caminho.
A preparação para correr o Rio não foi das melhores. A prova não foi das melhores. A relação com essa maratona foi um misto de amor e ódio (diferente de tudo o que eu tinha sentindo nas quatro vezes anteriores). Mas conclui os 42K, comemorei e tal. Só que algo estava estranho dentro de mim.
Então veio a Uphill. E foi lá na Serra do Rio do Rastro, em 30 de novembro de 2013, que tudo pareceu fazer sentido. Minha estratégia era fazer a minha corrida – escapar do corte no quilômetro 21, ou seja, passar nesse ponto antes de 2h30 de prova, e seguir no meu ritmo para completar os 42K antes das seis horas limites. “Eu não preciso ir rápido. Eu só preciso ir. E chegar!” – esse tinha sido meu mantra durante os treinos.
Foi uma prova muito solitária. Eram apenas 50 participantes e desde o início eu fiquei para trás – em alguns momentos corri silenciosamente ao lado do meu amigo jornalista Iúri Totti, que também ficou entre os lanterninhas. Senti frio, câimbras que nunca tinha sentido antes e algo que eu não sabia exatamente o que era. Talvez fosse o medo de não conseguir completar somado a alguma coisa física, sei lá. O tempo todo fiz força para espantar pensamentos negativos que invadiram minha cabeça.
Lá pelo quilômetro 30, dores horríveis me fizeram parar e pedir ajuda na ambulância que vinha logo atrás. O médico aplicou um anti-inflamatório em spray nas minhas pernas, fez uma massagem e voltei para a estrada. No 32, foi a vez do Iúri pedir socorro. Ele até ameaçou parar. Pedi que continuasse, caso contrário eu não teria forças para seguir também. Retornamos à corrida. Ele, melhor do que eu, abriu uma ligeira vantagem.
O tempo todo eu pensava na família e nos amigos, nas mensagens que recebi… Ia ser frustrante abandonar a prova. Pensava que se parasse iria decepcioná-los. E eu própria ficaria muito triste, não sei se iria segurar a onda depois. Sem comprometer minha integridade física, eu tinha de terminar. Eu tinha de ir até o fim. Se você me perguntar de onde eu tirei forças, respondo que não sei. Foi punk!
Ia negociando com meu corpo e com minha cabeça. “Vamos até o 35. Lá você decide o que fazer…” Lembrei das palavras de motivação no Congresso Técnico: “Quando você acha que não aguenta mais, ainda restam uns 30%”. Certamente eu já tinha entrado nessa reserva – a questão era até quando ela iria durar… Minha cabeça dava voltas e voltas. Ao meu corpo restava dar um passo atrás do outro.
No quilômetro 36, as dores voltaram com maior intensidade. A ambulância parou e eu entrei disposta a encerrar o jogo. O motorista perguntou: “vai parar?” Foi o jovem médico, Dr. Vitor Benincá (que eu nunca vou esquecer na vida!), que respondeu: “Não. Ela só vai tomar um medicamento, fazer uma massagem e vai continuar”. Ri mentalmente – agora tinha de ir mesmo.
Ganhei um gás. Mas como estávamos na parte de subida mais radical e avariada do jeito que eu já estava, segui aos trancos e barrancos, alternando caminhada e trote, com a exaustão estampada no rosto.
Virei a última curva de subida e à frente haviam apenas 600 metros planos até a chegada. Uma pessoa da organização disse: “Você não está vendo a linha de chegada por causa do nevoeiro, mas está logo ali. Está ouvindo o barulho?”
À medida que fui me aproximando do pórtico comecei a ver uma galera vindo em minha direção. O Iúri também estava ali, me esperando para cruzar a linha de chegada. Já chorando, eu dizia: “Chega! Eu não aguento mais, eu não quero mais…” Ele me segurou pela mão, sorriu e disse: “Calma, acabou.”
Eu e o Iúri finalizamos a Mizuno UpHill Marathon em 5h37m, entre risos e lágrimas, com um abraço de irmãos. Foi uma das provas mais especiais da vida: me apresentou muitos obstáculos, me colocou em situações dolorosas e angustiantes, me fez pensar nos meus reais limites e nos motivos para continuar – e especialmente mostrou a força que era preciso fazer para continuar. Eu terminei a Uphill pensando: “se eu fechei essa prova, eu tenho de fechar um monte de coisas que estão abertas na minha vida. Porque às vezes a gente começa algo e não termina, abandona pelo caminho… Se eu conclui uma maratona como a Uphill, também tenho de ser capaz, forte e corajosa para fechar outras coisas na minha vida“. Então, os nós dentro de mim naquela temporada começaram a desatar.
*** Em 2017 encarei a Serra do Rio do Rastro novamente. Tinha uma conta a acertar com suas mais de 250 curvas. Foi uma prova de redenção. Mas isso é assunto para um outro post…
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