Maratona de Curitiba (2009)

No dia 22 de novembro de 2009, corri minha terceira maratona, desta vez em Curitiba (PR) – as outras foram Porto Alegre (em 4h04m, em maio/2008) e Nova York (em 4h20m, em novembro/2008). Razoavelmente treinada e segura – principalmente depois de ter participado do Desafio dos 600K SP>RJ da Nike no mês anterior – cheguei à prova bastante tranquila e motivada. Talvez tenha minimizado um pouco as dificuldades do percurso, é verdade. Muitas pessoas haviam me falado o quanto era duro, mas achei que daria conta. E tinha em mente o tempo que eu queria fazer – pelo menos igual a Nova York.

Um motivo a mais de felicidade foi levar meu filho, de 8 anos. Durante a prova ele ficou com uma amiga de Curitiba, a Giovanna, que criou uma estratégia para me ver passar ao longo do percurso. Adorei a ideia.

Para criar um relato diferente, por sugestão de um amigo, levei um pequeno gravador e registrei as impressões e emoções da prova. Aqui vou reproduzir um pouco do que se passou na minha cabeça e o que aconteceu com meu corpo. As dores e as delícias da minha Maratona de Curitiba, a prova que me fez estar entre o mágico e o trágico.

5H30 DA MANHÃ

Já estou de pé, me arrumando. Consultei o Clima Tempo e vi que pode fazer 29 graus, com 80% de umidade. Isso me preocupou um pouco mais, porque ontem estava super fresco e hoje é uma incógnita. Acordei bem, mas um pouco mais preocupada do que os outros dias, afinal chegou a hora.

Daqui a pouco vou descer e tomar café da manhã, a largada é às 7h30. Não sei se eu senti um pouco minha garganta, se isso é desculpa para se eu não for bem… Mas, enfim, estou aqui para minha terceira maratona, com o coração na mão.

5H50 DA MANHÃ

Acordei o Antônio agora. Ele foi meio que reclamando, mas já entrou no banho.  É sempre uma preocupação a mais trazer uma criança, mas eu queria muito que estivesse comigo. E ele está aqui, colabora. Sei que essa é uma hora em que eu devia estar mais concentrada para a prova… Mas daqui a pouco vou trocá-lo e vamos descer para o café da manhã.

7H29 DA MANHÃ

Estou aqui na largada, com a mão gelada. Um minuto para a largada, batimento cardíaco em 108. Feliz. Vou ver se eu chego… Ver se chego, não. Eu vou chegar. Mas quero dentro do tempo que eu me propus a chegar. Foi dada a largada. Vambora…

OS DOIS PRIMEIROS QUILÔMETROS

A prova tem mais gente do que em Porto Alegre, é mais movimentada. O sol está saindo. Passei pelo quilômetro 2 com pace de 5m30s/km (a orientação do treinador era fazer os primeiros quilômetros a 6m20s). Estou rápido demais. Vou tentar reduzir para chegar bem.

(conversando com outra corredora)

– De onde você é?

– Eu sou de Araucária, região metropolitana de Curitiba.

– Como é seu nome?

– Angelita.

– Quantos anos você tem?

– 41. E você?

– Meu nome é Yara, tenho 43. Você corre há quanto tempo?

– 13 anos. Essa é minha segunda maratona. A primeira foi aqui também em Curitiba, que eu completei em 3h50m.

– Uau! E agora, pretende fazer em quanto?

– Ah… Quero baixar o meu tempo.

– Tem alguma estratégia durante a prova?

– Eu gosto de fazer amizade, ir trocando ideias. Assim a gente não vê o tempo passar. Também penso em coisas que me dão alegria e força. Procuro pensar em minha mãe e em minha filha, de seis anos.

– Olha lá, já vem outra subida. Já deixamos para trás quase 4 quilômetros.

DO 6º ao 10º QUILÔMETRO

Daqui a pouco nós vamos passar de novo perto da largada. Estamos quase no quilômetro 7, fazendo um ritmo de 6m/km. Acho que ainda estou um pouco forte. Vou tentar diminuir. E por enquanto tudo tranquilo.

São 8h05 da manhã, termômetros marcando 22 graus, sol.

A gente acabou de passar por uma cadeirante, Angelina. Cara, é muito difícil. Essa é de tirar o chapéu. Para aguentar as subidas e descidas dessa prova.

Estamos no quilômetro 7, ansiedade ainda. Daqui a pouco vou tentar encaixar o ritmo e ir embora até o final. Agora me passou pela cabeça que eu continuo lutando contra minha natureza. Eu não tenho perfil de corredora. Eu tenho quadril largo, eu sei que isso dificulta.

Antônio!!! Olha a mamãe aqui! Lindo! (nessa hora fiquei babando pelo meu filho, conversando ainda com a Angelita, a corredora de Araucária)

Estamos quase nos 10 quilômetros. Devo fechar os 10K com 58 minutos. Está super bom.

Passei nos 10 quilômetros com um pouquinho menos do que 59 minutos. Estou precisando de água, para tomar meu primeiro gel, antes que a fome aperte.

CHEGANDO AO QUILÔMETRO 14

Minha amiga de Araucária apertou o passo e foi… Não vou dizer que meu joelho não está doendo, porque está doendo. Tá pegando o joelho, começou a dar pontada na panturrilha e um pouco do quadril esquerdo. Mas vou continuar. Vou tomar o ibuprofeno lá na frente e seja o que Deus quiser: 13 quilômetros e 900 metros, quase 14, 1h23m de prova.

ATÉ O QUILÔMETRO 19… E AS PRIMEIRAS DORES MAIS FORTES

Estou vendo minha amiga de Araucária. Mas eu não vou puxar para pegar ela, não. Vou ficar na minha. Os homens estão passando. Logo encontro os amigos. Tenho que estar muito concentrada agora. Vou aumentar o passo daqui a pouco.

Foi meu pior quilômetro até agora, pace de 6m23s. Estou fazendo essa média nos últimos. Mas na média geral ainda estou dentro dos 6min/km. No meu relógio acabou de marcar 15km, 1h30m certinho.

Se eu fosse elite e a TV tivesse transmitindo, o locutor diria assim: “Lá vem a Yara, mas com visíveis sinais de cansaço. Será que ela vai segurar?” Daqui a pouco vou tomar o remedinho para ver se passa esse desconforto do quadril. Quando a gente está correndo vêm esses delírios na cabeça, de que você é elite. Mas a cobrança é sua mesmo.

Dei uma baixada agora. Cansei. Vou andar só um pouquinho, para me recuperar. Não vou parar. Só dois minutinhos. Vou andar um pouco e puxar depois. É muito cedo para querer andar.

– Vamos lá, fôlego, respira. Você vai conseguir! Fé em Deus, acredita em você – alguém gritou.

O cara me deu uma força, agora eu vou continuar!

– Yara! E aí, tudo bem?

– Oi Luis. A gente se vê no final. Valeu!

Passou o Luis agora, meu amigo de São Paulo. Ele pegou na minha mão. Isso me deu a maior força. Era o que eu precisava. Impressionante como a gente precisa dessas coisas. Estou louca para ver o Antônio também. É de apoio que eu preciso. Fiquei arrepiada de pensar nisso. Fechei esse trecho em 6m37s: 17 quilômetros já completados.

Não dá para ficar pensando em quanto falta ou quanto já foi. Eu tenho que pensar em continuar a correr, correr. Melhorei um pouco nesse quilômetro, 6m10s. Está bom demais. Recuperei um pouquinho. Doem um pouco as costas, o baço. E lá vou eu.

Meu quadril ainda dói, como se tivesse em uma prensa. Daqui a pouco vou ver o que fazer: tomar gel, comer alguma coisa.

Estava me sentindo mais magra. Mas agora já voltei a me sentir gorda de novo. O passo fica curto e voltei a me sentir gordinha de novo.

PASSOS LENTOS, QUASE NA MEIA MARATONA

Estou no quilômetro 19 para o 20, é uma subidinha. Eu estou andando um pouco… Ah, parei, vai! Chega de me cobrar. Vou andar um pouquinho para me recuperar. Eu sei que eu posso. Estava indo super bem. Vou dar esse descanso e no 20 vou firmar, para ir até o fim. É claro que eu tenho um pouco de vergonha de falar que estou andando, mas vou andar. Quando chegar ali, naquele poste, vou voltar a correr para não parar mais, até o final.

Chegou o poste que me impus como limite, vou voltar a correr

Oi, lindo! Mamãe está cansada… (encontrei outra vez o Antônio perto do km 21).

É muito sobe e desce. A tentação de andar é muito grande. A cabeça fica pedindo toda hora para andar. Estava indo bem, agora não sei não. Tentando pensar no treinamento, na prova da Nike, mas está difícil.

– Vamos lá garota! – gritou uma moça.

A PARTIR DO QUILÔMETRO 22, FAZENDO CONTAS

Se eu quiser terminar essa prova em menos de 4h20m, tenho que correr agora. Tenho duas horas para terminar essa maratona. Faltam 20 quilômetros. Mais da metade já foi. Não estou cansada, mas minha perna está meio travada. Sei lá o que está acontecendo. Mas acho que é mais minha cabeça que está travada. As pessoas devem estar olhando com dó para mim, porque estou andando. Ou será que eu é que estou com dó de mim? Não. Eu estou curtindo, embora esteja com dor nas pernas, andando… Vou andar só até ali e depois volto a correr. Eu juro: agora, a partir do quilômetro 22, vou correr até o fim. Eu tenho de correr. Só faltam 20. E 20 dá para tirar de letra.

Mais uma vez caminhando. Está fogo. Minhas mãos estão formigando, meus lábios também, estou esgotada (minha voz é desoladora nesse momento). Tenho que tirar forças de algum lugar, sabe-se lá de onde. Tenho de completar em menos de 4h20m. Tenho de reagir.

(quinze minutos depois) Queria correr, mas não consigo. Está meio desesperador olhar o relógio, ver o tempo passando e você não evoluindo. Meu ritmo médio de prova até aqui é de 6m21s/km, é o que o treinador planejou, mas ainda faltam 16 quilômetros. Eu tenho de encontrar forças. Tenho vontade de chorar de desespero, de decepção. Eu coloco na cabeça uma coisa que eu não vou poder cumprir.

Eu não sei se dói tudo ou se eu não estou sentindo mais nada. Sei que estou cansada. 3h04m de prova, 28400 metros percorridos. Se fosse dar tudo muito certo, eu tinha de terminar em… Não sei se eu vou conseguir correr mais.

NO QUILÔMETRO 30, UMA PEQUENA REAÇÃO

(Fiz o quilômetro 30 em 6m02s e depois voltei a andar). Estou tentando me motivar, pensar que minha vida depende desses 11,5 quilômetros finais, mas está fogo. 3h20m de prova e eu estou muito cansada. Nem sei se é cansaço, as pernas estão pegando, senti câimbra… As pessoas falam que eu sou forte, mas eu não sou tão forte assim. Quero ver se eu consigo, vamos lá.

É mais subida e descida do que a gente pensa. Nunca andei tanto. Nunca vi tanta gente andando. Parece até a caminhada. Estou no quilômetro 32, com 3h33m. Na melhor das hipóteses, na maior das minhas ilusões, dos meus sonhos, eu terminaria em 4h33m. Mas acho que nem vai rolar, porque fazer a 6min/km daqui até o final vai ser difícil.

A gente só vê gente andando. Pensei agora como é que vai ser trabalhar amanhã. Estou quebrada, muito dolorida. A hora que esfriar, não quero nem ver. Dói pé, dói joelho principalmente, dói coxa, dói quadril, doem costas. E estou sentindo fome.

O sol foi embora, está um ventinho. O termômetro está marcando 31 graus ali.

(fiz o km 34 andando, em inacreditáveis 11m25s) Faltam 8 quilômetros para terminar e acho que isso foi a coisa mais difícil que eu já fiz na minha vida. Essa maratona foi difícil.

UM POUCO DE CONVERSA NA ALTURA DO QUILÔMETRO 35

(ouvindo a conversa de um corredor fazendo sua estreia em maratonas, com os amigos que davam apoio)

– Vamos lá, Marcão: 500 metros andando, 500 metros correndo.

– Eu juro que estou tentando fazer força – disse o ofegante Marcão.

– Yara, acho que você vai ter que ir com o Marcão até o fim.

(Eles foram, eu fiquei)

(agora conversando com um curitibano, sentindo o vento forte e percebendo a tempestade que começava a se formar, quilômetro 36)

– Vem chuva por aí.

– E não é das fracas – sentenciou ele.

– Queria estar terminando agora, com 4h17m. Fiz o que pude – disse bastante desanimada.

(Esse trecho foi bom, a conversa distraiu: falamos do clima, dos 600K, de outras maratonas. Desta vez fui eu quem acelerou, com medo da chuva).

VEIO CHUVA, MUITA CHUVA

(água de todos os lados, quase não dava para enxergar. Fiquei um bom tempo só me preocupando onde pisar, mas também curtindo aquela sensação boa de correr em plena tempestade. Voltei à realidade quando ouvi alguém dizer“Vamos pessoal, falta pouco. Agora só 3 quilômetros”)

3 quilômetros, uma volta no lago do Ibirapuera. Eu consigo.

A RETA FINAL

(me agarrei à força de alguém que estava nas mesmas condições que as minhas. No último quilômetro troquei mais algumas palavras com outro corredor curitibano, desesperada para ver o pórtico de chegada. Faltando uns 200 metros, graças a uma logística perfeita da minha amiga Giovanna, vejo o Antônio, meu filho, que vem de mãos dadas comigo).

– Antônio!!! Desculpa, a mamãe não conseguiu fazer o tempo que eu falei para você que ia fazer. Foi muito difícil. Doeu o joelho. Mamãe correu 42 mil metros em quase cinco horas!

– O pai do meu amigo fez em 3h45m.

– Muito bom!

– Quanto você fez?

– Agora estou com 4h57m.

(cruzamos a linha de chegada, pegamos a medalha, recebemos os parabéns e continuamos a conversar)

–  Onde está doendo, mãe? Eu não vi você no quilômetro 30, achei estranho. Todo mundo conhecido já tinha chegado, menos você…

– É que foi muito difícil para a mamãe, filho.

– Mas você não desistiu. Por que você não desistiu?

– Ah, filho, nem passou pela cabeça desistir.

– Onde você estava com 4h09m? (esse era o tempo que eu pretendia fazer e que falei para o Antônio)

– Com 4h12 de prova eu estava no quilômetro 36.

– A Giovanna disse que viu muita gente parada ali.

– Pois é, tinha muita gente andando, nunca vi tanta gente andando.

– Eu também. Acho que você completaria em quarto, em terceiro ou segundo se fosse uma Meia. De 10K podia ser a primeira.

– Já imaginou o que é a Comrades? O dobro disso aqui…

– Quanto é a Comrades, mesmo? 84K? Seu amigo já fez três vezes, né?

– Na Comrades são 89 km.

– Pelo menos você não foi a última, ainda tem muita gente chegando. Tem milhões de pessoas correndo aqui.

(mais adiante, registrando no gravador as impressões finais…)

Eu sei que acabou! Acabou a Maratona. Estou aqui com o Antônio, estou muito dolorida. Está doendo tudo, especialmente o joelho. Estou um pouco decepcionada com meu resultado.

(risadas do Antônio interrompendo)

– Ela tá feliz!

– Estou feliz porque completei pelo menos.

– Ela não está triste, não!

E essa foi a saga da Maratona de Curitiba. Levei algum tempo para escrever por falta de tempo – ou quem sabe receio de reviver a experiência. Vi o quanto sofri (minha voz em vários pontos é mesmo de sofrimento), mas vi também o quanto me deliciei, principalmente com esse momento final, com meu filho. Essas emoções ficam marcadas na vida da gente para sempre. Imagine ele daqui alguns anos lembrando que, aos 8 anos, esteve com a mãe na reta final de uma maratona, dizendo palavras do mais puro incentivo, sem saber formalmente o que é isso. Ah… É uma experiência incrível.

A maratona cobrou sua conta. Estou com uma pequena lesão (uma tendinite de quadríceps), mas já sonho com as próximas. Cada uma é cada uma.